sábado, 18 de outubro de 2014

CANÇÃO DE OUTONO

CANÇÃO DE OUTONO (Cecília Meireles)

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o própro coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando áqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.

Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

EXERCÍCIO

EXERCÍCIO (Nuno Júdice)

Pego num pedaço de silêncio. 

Parto-o ao meio,

e vejo saírem de dentro dele as palavras 
que ficaram por dizer. 

Umas, meto-as num frasco

com o álcool da memória, 
para que se transformem num licor de remorso; 

outras, guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,

a quem me perguntou o que significavam.

Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. 

Bebo o licor do remorso; 
e tiro da cabeça as outras palavras que lá ficaram, 
até o ruído desaparecer, 
e só o silêncio ficar, inteiro, 

sem nada por dentro.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

VALSA BRASILEIRA

VALSA BRASILEIRA
(Chico Buarque)

Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo

Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu

Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento

Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer

E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver

Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

NOITES COM SOL

NOITES COM SOL
(Flávo Venturini)


Ouvi dizer que são milagres noites com sol

Mas hoje eu sei não são miragens noites com sol
Posso entender o que diz a rosa ao rouxinol
Peço um amor que me conceda noites com sol

Onde só tem o breu, vem me trazer o sol,
vem me trazer amor

Pode abrir a janela...
Noites com sol e neblina
deixa rolar nas retinas
Deixa entrar o sol

Livre serás se não te prendem constelações
Então verás que não se vendem ilusões

Vem que eu estou tão só
Vamos fazer amor,
vem me trazer o sol
Vem me livrar do abandono,
meu coração não tem dono
Vem me aquecer nesse outono,
 deixa o sol entrar

Pode abrir a janela,
noites com sol são mais belas
Certas canções são eternas
Deixa o sol entrar

terça-feira, 18 de outubro de 2011

SÚPLICA

  Súplica
(Florbela Espanca)

 

Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...

Vem para mim,amor...Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!...

sábado, 10 de setembro de 2011

FELICIDADE

FELICIDADE
(Guilherme de Almeida)

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!

quarta-feira, 22 de junho de 2011

INSATISFEITA


INSATISFEITA
(Helena Verdugo Afonso)

Enfim, posso morrer! Já te beijei
a linda boca perfumada e quente,
num beijo longo, divinal, fremente,
um beijo aonde toda me entreguei..

Não me conheço agora. Já nem sei
se fiz bem, se fiz mal. Minha alma ardente
sofria por um bem que tinha ausente,
e morro na ventura em que fiquei...

É assim, o meu amor: eu, que vivera,
na crença de esperança já perdida,
tenho de ti o bem que apetecera!

Por esse beijo, vivo tão dorida,
que, para ser feliz, antes valera
ficar a desejá-lo toda a vida!. . .

ANSEIO


ANSEIO
(Helena Verdugo Afonso)

 Amor, vivo tão só, nesta tristeza,
onde minh'alma se desfaz em pranto,
longe do teu olhar cheio de encanto,
em que fiquei eternamente presa.

Tão longe ando de ti, numa incerteza
de ter-te, minha vida! E entretanto,
vai crescendo este amor, mas tanto e tanto,
em místico fervor como quem reza! . . .

Ando faminta, cheia de desejo
dessas carícias tão de mim ausentes,
que me enlouquecem, e que em ti prevejo...

E morro na paixão que mal pressentes,
e perdem-se pelo ar cheios de pejo
os beijos que te dou e tu não sentes...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

JOGO


JOGO
Nuno Júdice, in "A Fonte da Vida"


Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A QUEM ME FAZ FELIZ

A quem me faz feliz
(Ivan Lins)

Existe alguém
E existirá
Que me faz queimar ou padecer de frio

E esse alguém
Sabe que chegou
E calou a dor de meu peito vazio

Triste é ser só
Sigo meu caminho
Mas não vou sozinho
Trago esse meu coração que diz:

Amo as estrelas, amo certos olhos
Amo a quem me faz feliz.
 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

VIAGEM

Viagem
(Paulo César Pinheiro e João de Aquino)

Oh! tristeza me desculpe, estou de malas/ prontas
Hoje a poesia veio ao meu encontro,
Já raiou o dia vamos viajar.

Vamos indo de carona na garupa leve
Do vento macio que vem caminhando,
Desde muito longe, lá do fim do mar.

Vamos visitar a estrela da manhã raiada
Que pensei perdida pela madrugada
Mas que vai escondida querendo brincar.

Senta nesta nuvem clara, minha poesia,
Anda, se prepara, traz uma cantiga,
Vamos espalhando música no ar.

Olha quantas aves brancas, minha poesia,
dançam nossa valsa pelo céu que o dia
Fez todo bordado de raios de sol

Oh! poesia me ajude, vou colher avencas,
Lírios, rosas, dálias pelos campos verdes,
Que você batiza de jardins do céu.

Mas pode ficar tranqüila, minha poesia,
Pois nós voltaremos numa estrela guia,
Num clarão de lua quando serenar.

Ou talvez, até quem sabe, nós só voltaremos
No cavalo baio, no alazão da noite
Cujo nome é raio, raio de luar.


sábado, 9 de outubro de 2010

CANÇÃO DESSE RUMOR


Canção desse Rumor
(Lya Luft)

Quem - estando ausente - entra no quarto
Quem deita ao lado meu, quem passa
No meu coração seus lábios quentes, quem
Desperta em mim as feras todas
Quem me rasga e cura
Quem me atrai?

Quem murmura na treva e acende estrelas
Quem me leva em marés de sono e riso
Quem invade meu dia após a noite
Quem vem – estando ausente -
E nunca vai?

TRAZE-ME


Traze-me
(Cecília Meireles)

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
-Vê que nem te digo - esperança!
-Vê que nem sequer sonho - amor!

E O RESTO É SILÊNCIO


E o resto é silêncio....
(J.G. de Araújo Jorge)

E então ficamos os dois em silêncio, tão quietos
como dois pássaros na sombra, recolhidos
ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite, dois caminhos
que se juntam
num mesmo caminho...

Já não ouso....já não coras...
E o silêncio é tão nosso, e a quietude tamanha
que qualquer palavra bateria estranha
como um viajante, altas horas...

Nada há mais a dizer, depois que as próprias mãos
silenciaram seus carinhos...
Estamos um no outro
como se estivéssemos sozinhos....

SONETO


Soneto (Chico Buarque)

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
 
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio.




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

DESEJOS VÃOS


Desejos Vãos
(Florbela Espanca)

Eu queria ser o mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a pedra que não pensa
A pedra do caminho, rude e forte!

 

Eu queria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e tensa
que ri do mundo vão e até da morte!

 

Mas o mar também chora de tristeza...
as árvores também, como quem reza,
Abrem, aos céus, os braços, como um crente!

 

E o sol altivo e forte, ao fim do dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as pedras... Essas... Pisa-as toda a gente!...

FOLHAS DE ROSA


FOLHAS DE ROSA
(Florbela Espanca)

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto.

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...